sábado, fevereiro 09, 2008

NARCISO

Narciso foi criado apenas pelo pai, em uma pequena cidade do interior. O pai era um senhor de feições duras, pouco falava, jamais se via um sorriso em seu rosto. A mãe dele havia morrido quando ainda era um bebê, embora o pai nunca tivesse lhe dito como. Durante sua infância teve alguns amigos, mas seu pai nunca o deixava ir muito longe de casa. Jogava bola, brincava de pega-pega, mas sem se afastar da pequena chácara em que viviam. Havia um ribeirão há uns dois quilômetros de lá, mas seu pai nunca o deixara ir. Também nunca tentou fugir.

Com o tempo os amigos foram crescendo, a vida tomando outros rumos e Narciso continuava lá. Isso não o incomodava, passava temporadas sozinho, em que as únicas pessoas que via além de seu pai era o dono do armazém e o padre. Passava os dias a ler, seu pai tinha uma estante repleta de livros dos mais variados tipos, de Jorge Amado a Jorge Luis Borges, de Paulo Coelho a Paulo Leminski. Nunca teve critério de escolha, apenas pegava um livro e se punha a ler.

Seu pai foi envelhecendo, e com isso não tinha mais força para cuidar da chácara sozinho. Foi quando contratou uma empregada. Seu nome era Dolores, uma jovem com feições indígenas, alta, dona de um corpo escultural, de cabelos compridos e rosto simples, mas muito belo, com lábios grandes e grossos. O pai de Narciso tinha o hábito de arrumá-lo para a missa de domingo, escolhia a roupa e até penteava seu cabelo. Com o tempo, Dolores tomou conta dessa tarefa também.

Ela falava pouco e seu nível cultural era baixíssimo. Limitava-se a seguir as regras, nada questionava nem sugeria. Mas ficava muito incomodada com a falta de vaidade do dono da casa. A casa era feia, as paredes não eram pintadas há muitos anos, os cômodos eram simples e não havia visto sequer um espelho pela casa. Dolores angustiava-se com aquele ambiente cinza e sem emoção, mas continuava a fazer seu trabalho.

...

Era domingo e Dolores pôs-se a arrumar Narciso. Viu que o rapaz tinha um belo corpo, apesar de passar o tempo todo dentro de casa e ser incapaz de articular uma conversa sobre qualquer assunto. Por vezes ela tentou puxar papo, mas ele limitava-se a responder suas perguntas, da maneira mais direta e objetiva possível.

Ele não se importava de não poder sair. Afinal, sempre havia sido daquele jeito, e a mudança era desnecessária. Não precisava de um ribeirão se podia se banhar em um chuveiro ou mesmo em uma banheira. Foi o máximo que conseguiu ouvir dele naquele momento, antes de arrumar sua roupa branca e ele levantar para ir à missa.

Dolores chorava todas as noites. De onde viera, as pessoas eram muito calorosas, trabalhara em outras casas que viviam cheias de gente. Conheceu pessoas briguentas, maridos infiéis, adolescentes rebeldes, mas nunca havia visto tanta frieza em um mesmo lugar. Um dia arrumando o quarto do velho, encontrou em uma gaveta, alguns manuscritos de uns poemas:

O homem não faz jus

Ao sacrifício da cruz

Rejeitou o perdão

Escarrou no mundo

Se rendeu à maldição

Não adianta a dor

Nem maior desgosto

Somos tamanho tumor

Que haveríamos de temer

O nosso próprio rosto

Ficou assustada com tamanha dureza nas palavras. Não compreendia como alguém podia ter tanto ódio da humanidade, tanto desprezo.Em outros versos fazia menção a suicídios e assassinatos em massa. Entendeu Narciso e sentiu grande pena dele. No fundo sua indiferença viera da criação do pai, que sempre buscou afastá-lo de seres humanos, fazendo com que ele convivesse apenas o necessário com outras pessoas.

A semana toda, Dolores não conseguiu dormir. Apenas pensava em Narciso, e sofria em pensar que ele fora privado de todas as maravilhas do mundo, de um banho de ribeirão, do frio na barriga de estar em um lugar desconhecido. Chegou a chorar pelo garoto, e chegou à conclusão de que deveria fazer algo para ao menos tentar ajudá-lo. Via todos os livros na estante e imaginava, que se tivesse lido metade deles, saberia o que fazer. Mas trabalhou com a realidade, era uma empregada doméstica, pobre, que por sorte não era analfabeta.

Chegou o domingo e Dolores levou Narciso para o quarto. A roupa dele já estava passada, e o jovem se despiu para vestí-la. Dolores tocou seu ombro e quando ele se virou, ela estava nua. Sem tempo para a reação, o rapaz se viu beijado pela empregada, com tamanho furor, que não conseguiu afastá-la. Quando caiu em si, estava exausto, deitado na cama ao lado de Dolores.

Passaram-se alguns dias e nada foi dito sobre o assunto. Narciso não sabia como reagir, e como sempre, optou pela indiferença. Vez por outra se pegou olhando para as ancas da empregada, mas rapidamente cruzava as pernas e retornava o olhar para o livro. Dolores podia ser humilde, mas não era burra, sabia que aos poucos iria quebrar a indiferença do rapaz. Mas tudo devia ser bem feito, pois se o pai descobrisse que o filho havia comido a criada, ela sabia que a morte era seu castigo mais leve.

Certa manhã, o velho foi tomar banho, enquanto Narciso ainda dormia. Dolores não pensou duas vezes, trancou a porta do banheiro e correu para o quarto do rapaz. Sem que ele pudesse dizer nada, segurou-o com seus braços musculosos e praticamente o arrastou para fora de casa. Com o tempo Narciso foi cedendo, ainda assustado, mas curioso por saber onde a criada o levaria seguiu-a. O problema é que ela não tinha onde ir, queria salvá-lo, mas caiu em si, e viu que não podia salvar nem a própria pele. Chegaram perto do ribeirão e ela parou, abraçando ele e chorando.

Ele apenas ficou parado, aparando com o peito as lágrimas de Dolores, sem dizer uma palavra. Ela olhou no fundo dos seus olhos e mais e sentiu-se atraída por toda aquela fleuma, aquela impassividade diante do mundo.Desnudou a si e a Narciso e o chamou para o ribeirão. Já dentro da água, viu que ele permanecia parado, olhando para a água. Foi a primeira vez que viu ele demonstrar algum sentimento, parecia amedrontado.

Dolores lembrou-se dos poemas do velho:

Somos tamanho tumor

Que haveríamos de temer

O nosso próprio rosto

Lembrou-se que na casa não havia espelhos e provavelmente nunca houvera. Narciso nunca havia olhado para o próprio reflexo, e por isso aterrorizava-se com a primeira vez. Foi quando viu que o rosto que via em Narciso era o dela, os lábios grossos, o cabelo comprido, tudo igual. Saiu da água e foi abraçá-lo, igualmente assustada. Com um golpe, Narciso quebrou o pescoço dela e a jogou morta no chão.

Olhou seu reflexo e não viu um rosto. Mas uma massa amorfa, que não se parecia com nada, não era nada. Durante tantos anos, conviveu com pessoas, leu livros, assistiu a missas, ouviu a músicas, mas não se lembrava de nada. Não conseguia ver a si nos outros e nem vê-los em seu rosto. Não sabia o que sentia, nem o que era, aliás, percebeu que sequer era algo ou alguém.

Se jogou na grama alta que circundava o ribeirão. Ficou a ser contemplado pelo céu, a esperar Deus, esperar que ele dissesse como aquilo podia acontecer a uma criação tão bela como o homem. E ficou esperando o criador, por horas, esperou o sol se pôr e nascer novamente. Olhou à sua volta, tudo tinha forma, as àrvores, os pássaros, a terra, até mesmo o cadáver de Dolores era muito nítido. Olhou seu reflexo e viu que não havia nada, nenhuma pista de que era vivo. Fechou os olhos e se entregou ao Ribeirão, sentiu a água invadir seus poros e lhe arrancar a respiração. Em toda a sua vida, foi a primeira vez que se sentiu feliz.

4 comentários:

Tânia disse...

ADOREI!
Acho que não só por ele viver na roça, mas realmente, o que há de pessoas "privadas" do sentimento de vida..
Existem, não vivem, acho que isso é a pior coisa que pode existir.. por exemplo morar a vida toda no interior, mal ter saído uma ou outra vez da cidade, nem sequer do estado - conheço muita gente assim. Você não viveu nada, não viu nada de diferente, se trancou em um mundo fechado, meu deus.
Certo, muitos não tem como "sair dele", ou mesmo mentalidade pra isso, mas com certeza é muito diferente a cabeça de uma pessoa assim do que as que viajam, ou ao menos, sem sair da própria casa, estão em diversos "mundos diferentes" ao mesmo tempo.
Muito bom mesmo.

mari lou disse...

eu lembrei d grenouille, d "o perfume", do suskind. ele ñ tinha odor, as pessoas ñ o reconheciam, ñ o enxergavam, pq ele ñ tinha cheiro...

a figura do pai e do personagem principal me lembrarm os chinaski do "misto qente" d bukowski...

gostei da releitura... entre se apaixonar pela própria imagem e ñ ter a própria imagem existe uma linha tênue, afinal, ateh q ponto somos o q d nós é, ou somos o q os outros criaram?...

bjo.

mari lou disse...

ihihhi

é assim mesmo, com relação ao q eu vi no seu texto e q vc ñ havia tido contato ainda com eles... um dia enxergaram clarice lispector em mim, só q ainda ñ tinha lido nada dela.... rsrsrs mas hj em dia estou menos clarice... isso foi d um tempo mais d sombra, daqelas qestões existenciais nebulosas q nunca deixam d ser nebulosas....

agora eu jah li clarice... rsrsrs

mas, sei lá, d repente me veio a idéia d q como a gente vive um mesmo tempo, escrevemos sobre as mesmas coisas, invariavelmente. as angústias hj são globais. claro q existe um estilo próprio d cada um e talz, mas o q vem dentro reflete mtas vezes as mesmas coisas, só com alguns nuances diferentes, por isso, axo, vi buko e suskind no teu texto.

é... essa coisa do espelho exerce um fascínio mto grande mesmo sobre a gente... mas, sei lá, axo q existem outras formas d ser espelho do outro, mesmo nunca tendo tido a imagem refletida num espelho: a frieza do pai é a frieza do filho; ele leu os livros talvez o pai jah tenha lido um dia; esperar por q deus aparecesse. mas, é claro, entendi a metáfora aqi.

enfim, um bjo.

mari lou disse...

ahhh.. como sempre, meu avoamento me impede d fzer as coisas por completo.

vc perguntou como eu vim parar aqi no teu espaço. bem, foi assim. eu voltei a ler o buko. daí qis saber d tds os livros q ele jah tinha publicado no brasil. coloqei no velho google o nome dele e acabei chegando, entre outros lugares, no "crônicas dum amor louco", blog d uma moça q tem o link pro seu blog. cheguei lá pq tem um post q fala dele e talz, além do próprio nome do blog ser um título d livro do buko aqi publicado.

foi assim.

rrsrssr

e foi bom.

adorei seus contos.

mais bjo!